por Diácono Georges Bonneval
Qual é a visão que Deus deu ao meu percurso de vida?
Guardo uma excelente recordação do testemunho de um bispo muito idoso, que veio em uma das nossas casas, pregar um retiro espiritual. Quando o retiro terminou, a nossa Comunidade se reuniu à sua volta para escutar seu testemunho. Era um homem de Deus maduro e verdadeiramente resplandecente, cujo rosto feliz refletia a santidade e a alegria cristãs. Seu testemunho podia se resumir neste tema: “Em toda a minha vida, eu nunca fiz o que eu queria!”. O que este pastor deixava compreender era, evidentemente, a paz e a alegria imensas de ter procurado fazer unicamente a vontade de Deus em toda a sua longa história vivida.
Qual é a visão espiritual que Deus te mostrou na tua vida pessoal? Também podemos nos pôr a uestão nos planos fraterno e comunitário, ao nível do carisma fundador da minha Comunidade. Como é que eu reconheço que esta visão, e a pedagogia divina que a acompanha, foi me dada por Deus? Como é que eu permaneço fiel a essa visão dada? E se eu me afastei, como voltar hoje, ao seu eixo e à sua direção? Porque o testemunho do evangelizador e do missionário é permanentemente “um chamado à participação da comunhão trinitária” (Documento de Aparecida, n° 157).
A Escritura diz de forma precisa em Pr 29, 18: “Quando não há visão, o povo não tem freio”. Podemos traduzir assim: “o povo vive sem identidade clara”, ou ainda: “sem definição”.
Para construir a comunhão e a vocação comunitária: uma visão clara, uma identidade clara e uma missão clara
Lembro-me de um congresso organizado na França, nos anos 1984-85; esse congresso reunia a maior parte das comunidades novas do país. Podíamos descobrir a graça particular de cada uma dessas comunidades nessa grande tenda reservada aos stands de apresentação. Cada comunidade tinha feito o esforço de apresentar bem os traços essenciais do seu carisma fundador. Minha atenção foi atraída por um stand imenso, que poderia fazer-me acreditar, realmente, que se tratava de numa grande comunidade. No entanto, era uma pequena comunidade, com certeza com belas qualidades, mas o stand que tentava apresentá-la estava tão desmesurado que parecia tratar da Igreja universal com todos os seus carismas! Não sei se esta comunidade existe ainda hoje.
Uma das tentações e ilusões das nossas comunidades novas é, certamente, de acreditar que vamos poder fazer tudo a partir de nosso carisma fundador, de “nosso” único carisma. Mas ele é e sempre será, forçosamente, limitado!
Cada uma de nossas comunidades deve receber uma visão clara do seu carisma, assim poderá viver com fidelidade a clareza da sua identidade na Igreja e na sua Diocese, e consagrar suas forças e energias a uma missão clara; o que será proveitoso para o bem comum.
Podemos nos torturar e perder muito tempo com “lamentações vocacionais” do gênero: “Eu devia ter sido padre!” ou: “Eu devia ter sido consagrada!”, ou ainda: “Eu devia ter me casado com o Tomás”… Certamente, são questões profundas e, por vezes, angustiantes. Mas, a um momento, deverás “enfrentar o touro pelos chifres”: fazer um bom retiro espiritual, fazer-se acompanhar, pedir conselho… E, por fim, tomar uma decisão. Qual? Aquela que for no sentido da trajetória da visão de Deus sobre a tua vida, no mesmo eixo da pedagogia divina contigo, no sentido de tudo o que Deus já te deu. Porque ninguém refaz sua história pessoal, mas é na nossa história, única e concreta, que Deus vem se juntar a nós para, eventualmente, modificá-la e sempre santificá-la.
Penso, por mim, que realmente poderia entrar em três ou quatro comunidades da minha escolha! Gostei muito de cada uma delas num determinado momento da minha vida e do meu itinerário espiritual. Cada uma me atraía, me motivava e, de certa maneira, me realizava! Mas Deus não estava esperando por mim, apesar de todas as vantagens que eu encontrava nas minhas escolhas. Não se trata, de fato, de “fazer as obras para Deus” (quer dizer, a partir de nós mesmos), mas de “fazer a obra de Deus!” (a partir Dele).
Não se trata de procurar por si mesmo, a sua própria realização – mesmo vocacional! – como se tratasse de um produto de consumo para nos satisfazer; mas de receber o chamado e o dom de Deus, de segui-Lo e de sempre voltar a Ele: “Que possuis que não tenhas recebido?” (1Cor 4, 7).
S. Paulo poderia ter a tentação de fazer como os outros apóstolos (Pedro, Tiago e João), enquanto o Senhor o chamava a uma vocação singular; contudo, ele devia somente respeitar e seguir a visão que Cristo lhe tinha dado na estrada de Damasco:
“Este é o motivo por que te apareci: para constituir-te servo e testemunha da visão na qual me viste e daquelas nas quais ainda te aparecerei.” (At 26, 16)
Nesse sentido, o Apóstolo Paulo declara:
“Quanto a mim, rei Agripa, não me mostrei rebelde à visão celeste. Ao contrário…” (At 26, 19-20)
E ainda:
“Conhecendo a graça a mim concedida, Tiago, Cefas e João, os notáveis tidos como colunas, estenderam-nos a mão, a mim e a Barnabé, em sinal de comunhão: nós pregaríamos aos gentios e eles para a Circuncisão.” (Gl 2, 9)
Existe, na Igreja, uma grande variedade, complementaridade e beleza dos carismas. Paulo deu o exemplo de uma orquestra sinfônica, na qual Deus espera que cada pessoa, assim como cada comunidade, toque a sua partitura – e não a de uma outra.
“O mesmo se dá com os instrumentos musicais, como a flauta ou a cítara: se não emitirem sons distintos, como reconhecer o que toca a flauta ou a cítara? E se a trombeta emitir um som confuso, quem a preparará para a guerra? Assim também vós: se vossa linguagem não se exprime em palavras inteligíveis, como se há de compreender o que dizeis? Estareis falando ao vento.” (1Cor 14, 7-9)
Pois, assim como o Espírito Santo é o vínculo de Amor entre o Pai e o Filho, assim é a harmonia entre todos os carismas e as diversas comunidades das quais a Igreja está dotada. “A unidade na variedade é a ordem; a ordem produz a conveniência e a proporção, e a conveniência no todo constitui a beleza.” (S. Francisco de Sales, Tratado do Amor de Deus, cap. I, nº 110)
Na Carta Encíclica “Redemptoris Missio”, S. João Paulo II emprega cerca de vinte vezes, a expressão chave de “comunhão missionária”.
A comunhão – a koinonia – dos discípulos entre si é o ponto de partida de toda a obra missionária, assim como o seu fim último, que é fazer participar todos na comunhão que existe entre o Pai e o Filho. Porque, “a comunhão é missionária e a missão é para a comunhão” (Documento de Aparecida, n° 163).
“Os discípulos devem viver a unidade entre si, permanecendo no Pai
e no Filho, para que o mundo conheça e creia (Cf. Jo 17, 21.23). Trata-se de um texto de grande alcance missionário, fazendo-nos entender que somos missionários sobretudo por aquilo que se é, como Igreja que vive profundamente a unidade no amor, e não tanto por aquilo que se diz ou faz.” (S. João Paulo II, Redemptoris Missio, n° 23)
A comunhão, penhor de fecundidade e de autenticidade dos diferentes carismas
Na 1ª Carta aos Coríntios, Paulo, na sua teologia dos carismas, não cessa de fazer um vai e vem entre: a diversidade dos carismas (1Cor 12 e 14) e a unidade na comunhão (1Cor 11), em vista da caridade (1Cor 13).
“Os responsáveis e os agentes da pastoral missionária devem sentirem-se unidos na comunhão que caracteriza o Corpo místico. Por isto rezou Cristo, na Última Ceia: ‘Como Tu, Pai, estás em Mim e Eu em Ti, que também eles sejam em nós um só, para que o mundo creia que Tu Me enviaste’ (Jo 17, 21). Nesta comunhão, está o fundamento da fecundidade da missão.
Mas a Igreja constitui também uma comunhão visível e orgânica, e por isso a missão exige uma união externa e ordenada das diversas responsabilidades e funções, para que todos os membros ‘façam convergir, em plena unanimidade, as suas forças para a edificação da Igreja’.” (S. João Paulo II, Redemptoris Missio, n° 75)
É o Espírito Santo que constrói a unidade das comunidades que evangelizam, em comunhão com os sucessores dos Apóstolos e com o Papa. Essa unidade nunca pode ser uma uniformidade, mas “multiforme harmonia que atrai” (Papa Francisco, Evangelii Gaudium, n° 117).
“A Igreja ‘atrai’ quando vive em comunhão, pois os discípulos de Jesus serão reconhecidos se amarem uns aos outros como Ele nos amou (Cf. Rm 12, 4-13; Jo 13, 34).” (Documento de Aparecida, n° 159)
“Um sinal claro da autenticidade dum carisma é a sua eclesialidade, a sua capacidade de se integrar harmoniosamente na vida do povo santo de Deus para o bem de todos. Uma verdadeira novidade suscitada pelo Espírito não precisa de fazer sombra sobre outras espiritualidades e dons para se afirmar a si mesma. Quanto mais um carisma dirigir o seu olhar para o coração do Evangelho, tanto mais eclesial será o seu exercício. É na comunhão, mesmo que seja fadigosa, que um carisma se revela autêntico e misteriosamente fecundo.” (Papa Francisco, Evangelii Gaudium, n° 130)
Enfim, o evangelizador, da mesma forma que a comunidade evangelizadora, devem, então, fundar e renovar a sua comunhão com Cristo, particularmente na Eucaristia cotidiana que os transforma. Em comunidade de vida e de aliança, mergulhamos nossas diferentes missões nesta graça de comunhão eucarística, particularmente, a cada quinta-feira à noite, em volta da mesa fraterna, lembrando-nos o espírito do lava-pés de Cristo e o apelo humilde ao serviço de todos os nossos irmãos. “O Filho do Homem não veio para ser servido, mas para servir e dar sua vida em resgate por muitos” (Mc 10, 45).
Isso exige que o papel do evangelizador, assim como o da comunidade na missão, não tome um lugar excessivo no meio dos outros, mas que esse papel seja vivido de maneira a que “o Senhor brilhe mais que o ministro” (Papa Francisco, Evangelii Gaudium, , nº 138).
Leiamos novamente o Documento de Aparecida (particularmente o capítulo 5), que sublinha a importância da comunhão dos discípulos missionários na Igreja.
“Não há discipulado sem comunhão.” (Documento de Aparecida, nº 156)