por Diácono Georges Bonneval
O título deste artigo, assim colocado suscita uma questão: como viver o abandono interior para com Deus e à sua Providência, embora tenhamos que nos doar plenamente na nossa responsabilidade humana? Como podemos confiar-nos e abandonar-nos à Divina Providência, sem que este abandono, de fato, não seja preguiça da nossa parte nem negligência dos nossos deveres humanos?
Na nossa geração de tecnologias, performances, de robotização e de hiper-responsabilidades (falamos até de hiper-parentalidade), as técnicas de “relaxamento” e de múltiplos “antiestresse” para melhor se sentir na sua pele, vendem-se bem! O homem e a mulher modernos são levados a cair no perfeccionismo, com a tentação de querer tudo controlar e dominar (como os helicópteros sobrevoando a situação, ou os drones captando uma vista inalcançável!
Aquilo que, inicialmente, surge de um bom sentido de responsabilidade, pode, por conseguinte, tornar-se uma tensão exagerada e voltar-se contra a própria pessoa, até o profundo desânimo: “o esgotamento, o burnout”, doença que acompanha esta modernidade.
Outros, vivem a tendência oposta e são inclinados para um relaxamento do tipo “quietista”, esperando que Deus providencie até o pagamento na caixa do supermercado, arrastando-se até a uma desmobilização doentia.
Como veremos, a graça do abandono confiante na Divina Providência, não tem nada a ver com uma espiritualidade da negligência, nem com a ideia de um deus-provedor-prestador de serviços que vem “tapar os buracos” dos nossos esquecimentos e faltas de previsão!
a) Procurar o justo equilíbrio entre a parte de Deus e a parte do homem:
Tudo na nossa vida não depende unicamente da vontade humana, assim como também não depende somente de Deus. O episódio da multiplicação dos pães nos oferece um bom exemplo (cf. Mc 6,35ss):
Os discípulos, num primeiro momento, pedem a Jesus para mandarem embora as multidões porque a noite se aproxima e eles não têm o que comer. Não é sinal de uma grande compaixão nem caridade para com toda essa gente mas, de fato, eles esperam, legitimamente, um momento de tranquilidade prometido pelo Senhor.
Depois, é Jesus que lhes pergunta (como que para provocá-los!): “Dai-lhes vós mesmos de comer!”. Mas eles têm que comunicar a Jesus a sua impossibilidade de comprar pães para uma tal multidão.
Jesus vai então pedir-lhes, não para fazerem o impossível, mas para oferecer aquilo que eles têm realmente: cinco pães e dois peixes. Depois, Jesus pronuncia a bênção, parte os pães e dá-os aos discípulos para os distribuírem. E o milagre da multiplicação realiza-se, neste contexto: “Todos comeram e ficaram saciados” (Mc 6,42).
Este exemplo mostra-nos bem a estreita colaboração entre as escolhas e as hesitações humanas dos discípulos e o projeto do Senhor. Ambos, numa união progressiva da vontade, vão alcançar o milagre!
A confiança na Divina Providência não anula a contribuição da nossa parte. Com certeza, naquilo que depende de nós, Deus não o fará em nosso lugar. Mas nós podemos ser assim “Providência da parte de Deus”, uns para os outros. E, para nossa dignidade, Deus quer que sejamos com Ele, colaboradores, cocriadores.
No século XVI, Sto. Inácio de Loyola parece ter definido o justo equilíbrio entre a ação de Deus e a ação do homem. Ele escreve a este respeito: “Age como se tudo dependesse de ti, sabendo que, na realidade, tudo depende de Deus.” (citado por Pedro de Ribadeneira, em “A vida de Santo Inácio de Loyola”). Outras traduções interpretam: “Trabalha como se tudo dependesse de ti e reza como se tudo dependesse de Deus”.
O homem deve, primeiro, aceitar a condição da sua humanidade com seus limites, sua história, sua real particularidade. É então, que Deus lhe abre a Sua própria vida e a Sua santa vontade. Com efeito, Deus habita a liberdade da sua criatura quando esta aceita e não vem a negar-se ou a fugir.
Mas, por outro lado, a liberdade humana não pode fazer do homem o mestre e o dono do percurso da sua história, nem da sua vida. A sua liberdade deve adverti-lo contra a loucura autossuficiente de um controle total das suas ações sem Deus.
b) O abandono à Divina Providência, como fazer a Vontade de Deus, exige uma fé firme:
No século XVII, S. Francisco de Sales fazia do abandono confiante na Providência, o ideal de santidade do cristão. Isso quer dizer, alguém que está tão unido à vontade de Deus que não é mais Ele que dirige a sua vida, mas é Deus que o conduz em tudo o que ele faz. S. Paulo, bem antes, não tinha ele declarado: “Já não sou eu que vivo, mas é Cristo que vive em mim. Minha vida presente na carne, vivo-a pela fé no Filho de Deus, que me amou e se entregou a si mesmo por mim.” (Gl 2,20).
“Em resumo, a soberana Providência não é outra coisa mais do que o ato pelo qual Deus confere aos homens e aos Anjos os meios necessários ou úteis para conseguirem o seu fim.” (S. Francisco de Sales, Tratado do Amor de Deus, 230)
É, antes de mais, para honrar a sabedoria e a bondade divinas que somos chamados a nos confiarmos a ela em todas as coisas. Para a alma como para o corpo, somos responsáveis por cumprir os nossos deveres quotidianos, lembrando-nos que, se somos fiéis nas pequenas coisas, obteremos a graça de o ser também nas grandes.
“Ele morreu por todos, a fim de que aqueles que vivem não vivam mais para si, mas para aquele que morreu e ressuscitou por eles.” (2 Cor 5,15)
S. Francisco de Sales não via maneira mais nobre e mais perfeita de amar Deus, do que fazer da sua vontade, a vontade divina, cumprindo-a:
Sua vontade significada (pela Lei divina, os Mandamentos…) e abandonando-se, depois, à vontade do beneplácito divino (o que nos acontece pela permissão da Sua Divina Providência).
Sta. Teresinha do Menino Jesus, que festejamos neste mês de outubro, faz do abandono confiante a chave de compreensão da sua “pequena via”. Não devemos imaginar uma espiritualidade insípida, mas ao contrário, ela exige muita abnegação e fé.
Para Teresinha, o abandono “não depende, portanto, daquele que quer nem daquele que corre, mas de Deus, que faz misericórdia”. (Rm 9,16)
“O total abandono, eis a minha única lei.” (Sta.Teresinha, Poesia nº 32)
E face à morte, ela declara: “Essa palavra de Jó: ‘Ainda quando o Senhor me matasse, esperaria ainda Nele’ (Jó 13,15) me encanta desde minha infância. Mas foi preciso muito tempo para me estabelecer nesse grau de abandono. Agora, já cheguei aí; o bom Deus me colocou, Ele me tomou nos Seus braços e me pôs lá.” (Sta.Teresinha, Caderno Amarelo 707)
A fé em Deus, convida, por vezes, a uma mobilização de muitas energias humanas para chegar a um abandono, a aceitar certas renúncias e a morte de si mesmo… que consistem todas numa total confiança, em Deus só.
Mas, é qua
ndo a liberdade exerceu plenamente os seus direitos, que lhe é possível, sem demissão nem covardia, libertar-se de si mesmo e, por fim, abandonar-se.
Confiamos Naquele que é maior que nós, quando fazemos tudo o que depende da nossa parte. Uma tal liberdade reconhece simplesmente o seu limite, e é isso que faz a sua grandeza de filho!
A nossa liberdade encontra-se, então, liberta da obsessão dos seus sucessos e da ilusão do controle total de si mesmo e dos seus atos. Permanece aberta, ainda, a uma realização que não depende somente dela, mas de Deus na Sua Divina Vontade ou Providência.
E por vezes, devemos ceder completamente, abandonando-nos e, outras vezes, ao contrário, devemos aguentar fielmente até o fim, fazendo-se até violência!
“O Reino dos Céus sofre violência, e violentos se apoderam dele.” (Mt 11,12)
Quantas vezes a Providência de Deus nos surpreende! Será que Lhe damos essa possibilidade? O Patriarca Jacó fez a experiência providencial das surpresas de Deus:
“Jacó acordou de seu sonho e disse: ‘Na verdade o Senhor está neste lugar e eu não o sabia!’ Teve medo e disse: ‘Este lugar é terrível! Não é nada menos que uma casa de Deus e a porta do céu!’.” (Gn 28,16-17)
Sto. Eugênio de Mazenod (1782-1861, canonizado a 3 de dezembro de 1995 pelo Papa João Paulo II) escreve: “Eu tomei a resolução, de nunca apressar os momentos da Providência…” (Carta do dia 7 de junho de 1830)
c) A Divina Providência, como a Divina Vontade, convida à nossa oração
De fato, os nossos espíritos limitados não podem compreender tudo da Providência e da Vontade Divinas e estaríamos na ilusão se fôssemos tentados de não procurá-las, pela oração.
O Apóstolo Paulo convida-nos a rezar e a contemplar a Providência sábia, poderosa e discreta do nosso Pai Eterno: “Ó abismo da riqueza, da sabedoria e da ciência de Deus! Como são insondáveis Seus juízos e impenetráveis Seus caminhos! Quem, com efeito, conheceu o pensamento do Senhor? Ou quem se tornou Seu conselheiro? Ou quem primeiro Lhe fez o dom para receber em troca? Porque tudo é Dele, por Ele e para Ele. A Ele a glória pelos séculos! Amém.” (Rm 11,33-36)
É verdade que o nosso abandono não deve exercer-se da mesma maneira:
– Quando se trata de realidades que não dependem da vontade humana
(acidentes imprevisíveis, lutos, doenças incuráveis, circunstâncias que não dependem de nós…):
Os autores espirituais afirmam que, nessas situações: o nosso abandono não pode ser muito exagerado!
Porque, ao contrário, a resistência – e, sobretudo, a revolta – mesmo se são legítimas, são inúteis e não servem senão para nos tornar mais infelizes.
Enquanto, a aceitação, pela graça do santo abandono à Divina providência, que por vezes será progressiva, em espírito de fé, de confiança e de amor, tornará esses sofrimentos inevitáveis, transformados e fecundos.
– Somos, por vezes, chamados a dar prova de um “abandono heroico”:
Sta. Teresinha do Menino Jesus declara: “Eu me abandono aos teus Divinos Caprichos!”
Para bem compreender a graça do santo abandono (ou da santa indiferença):
A verdadeira provação tornar-se-á santificadora nessas circunstâncias dolorosas, cada vez que chegarmos a acolher e a dar o nosso sim. Através deste abandono, aprendemos a tirar proveito das provações que, ao longo do caminho da nossa fé, se transformarão.
“A Sua providência quer fazer desejar o sacrifício que ela mesmo impede, após de ser feito, como o vemos com Abraão (cf. Gn 22,10-12).” (S. Francisco de Sales – Carta 1407)
A prática do abandono muda, assim, as provações em meios de santificação, e isso ainda mais se a nossa prática é acompanhada por um maior amor por Deus. Temos um outro exemplo bíblico da Providência Divina que transformou milagrosamente uma situação de mal e de pecado:
“Vendo que seu pai estava morto, disseram entre si os irmãos de José: ‘E se José for nos tratar como inimigos e nos retribuir todo o mal que lhe fizemos?’ Por isso, mandaram dizer a José: ‘Antes de morrer, teu pai expressou esta vontade: ‘Assim falareis a José: Perdoa a teus irmãos seu crime e seu pecado, todo o mal que te fizeram!’ Agora, pois, queiras perdoar o crime dos servos do Deus de teu pai!’ E José chorou ouvindo as palavras que lhe dirigiam. Vieram os seus próprios irmãos e, lançando-se a seus pés, disseram: ‘Eis-nos aqui como teus escravos!’ Mas José disse-lhes: ‘Não tenhais medo algum! Acaso estou no lugar de Deus? O mal que tínheis intenção de fazer-me, o desígnio de Deus o mudou em bem, a fim de cumprir o que se realiza hoje: salvar a vida a um povo numeroso. Agora não temais: eu vos sustentarei, bem como a vossos filhos.’ Ele os consolou e lhes falou afetuosamente.” (Gn 50,15-21).
– Quando se trata de sofrimentos que provêm da injustiça dos outros, má vontade, maus procedimentos, calúnias…
Devemos, é claro, lamentar e reprovar essas injustiças, não tanto porque elas ferem o nosso amor próprio ou o nosso orgulho, mas porque elas próprias são uma ofensa a Deus e aos nossos irmãos.
No que nos diz respeito, a graça do abandono confiante nos ajudará a procurar reconhecer, na injustiça dos homens a nosso respeito, a Divina Providência que permitiu esse mal para nos dar uma ocasião providencial de purificação de outras faltas, essas bem reais, e que ninguém conhece nem nos censura.
“As penas, consideradas em si mesmas, com certeza não podem estimar-se; porém, consideradas na sua origem, isto é, na providência e na vontade divina que as ordenam são infinitamente estimáveis.” (S. Francisco de Sales, Tratado do Amor de Deus, 920)
Um outro exemplo bíblico na história do Rei Davi:
“Quando o Rei Davi chegou a Baurim, surgiu um homem, membro do mesmo clã da família de Saul, cujo nome era Semei, filho de Gera, e saiu proferindo maldições. Atirava pedras em Davi e em todos os oficiais do Rei Davi, e por isso todo o exército e todos os valentes se puseram à sua direita e à sua esquerda. Semei amaldiçoava a Davi com estas palavras: ‘Vai-te! Vai-te! homem sanguinário, bandido! O Senhor fez cair sobre ti todo o sangue da casa de Saul, cujo trono usurpaste. Assim fez , tirando das tuas mãos a realeza para dá-la a teu filho Absalão. Estás entregue à tua própria maldade, porque és homem sanguinário.’ Abisaí, filho de Sárvia, disse então ao Rei: ‘Por que este cão morto há de ficar amaldiçoando o Senhor meu Rei? Deixa-me atravessá-lo e cortar-lhe a cabeça.’ Mas o Rei respondeu: ‘Que tenho convosco filhos de Sárvia? Se ele amaldiçoa e se o Senhor lhe ordenou: ‘Amaldiçoa a Davi’, quem poderia dizer-lhe: ‘Por que fazes isso?’ ” Davi disse a Abisaí e a todos os seus oficiais: ‘Vede: o filho que
saiu das minhas entranhas busca a minha morte. Com mais razão, este benjaminita! Deixai que amaldiçoe, se o Senhor lhe ordenou que o fizesse. Talvez o Senhor considere a minha miséria e me restitua o bem pelas maldições de hoje.’ Davi e os seus homens continuaram o seu caminho.” (2 Sm 16,5-13)
As palavras do Senhor, no Evangelho, vão no mesmo sentido: “A quem te ferir numa face, oferece a outra” (Lc 6,29).
Convém reconhecer também nessa provação a permissão da Providência Divina que, através desse instrumento, nos desprende da ilusão das criaturas, liberta-nos das afeições desordenadas, do nosso orgulho, da nossa tibieza, e nos coloca na necessidade urgente de recorrer ao abandono através da oração. Essas injustiças são, por vezes, como um golpe de bisturi espiritual doloroso, mas libertador.
O Patriarca Atenágoras (1886-1972), foi patriarca da Igreja de Constantinopla de 1948 a 1972. Encontrou o Papa Paulo VI diversas vezes entre 1964 e 1968. Homem de unidade e de profunda vida espiritual, confiou o segredo do seu combate interior como um exemplo de confiança e de abandono na Divina providência:
“A mais dura das guerras é a guerra contra si mesmo. É preciso chegar até desarmar-se. Tenho lutado nesta guerra durante anos. Foi terrível.
Mas hoje estou desarmado. Não tenho mais medo de nada, porque o Amor lança fora o temor.
Estou desarmado da vontade de ter razão, de justificar-me, desqualificando os outros.
Não estou mais em guarda, à defensiva, ciumentamente crispado sobre minhas riquezas.
Acolho e partilho.
Não estou apegado, particularmente às minhas ideias, aos meus projetos.
Se alguém me apresenta outras melhores, aliás, não só melhores,
mas simplesmente boas, aceito-as sem arrependimento. Renunciei ao comparativo.
Aquilo que é bom, verdadeiro, real, é sempre o melhor para mim.
Por isso, eu não tenho mais medo. Quando não se tem nada, não se tem mais medo.
Se estamos desarmados, despojados, abertos ao Deus-Homem, que faz novas todas as coisas.
Ele apaga o passado ruim, e nos traz um tempo novo onde tudo é possível.”
Por fim, é preciso abandonar-nos a Deus em espírito de fé, acreditando, como diz S. Paulo, que “Deus coopera em tudo para o bem daqueles que o amam, daqueles que são chamados segundo o Seu desígnio” (Rm 8,28). Este ato de fé é aquele que fez Jó, quando, privado dos seus bens e dos seus filhos, permaneceu submisso a Deus, dizendo: “O Senhor o deu, o Senhor o tirou, bendito seja o nome do Senhor” (Jó 1,21).
“Quando, fazendo o nosso dever quotidiano, abandonamos tudo à Providência Divina, Nosso Senhor toma cuidado de tudo e conduz tudo. A alma está, então, face a face com Ele como uma criancinha face à sua mãe; quando ela a coloca no chão para caminhar, ela caminha até que a sua mãe a retome ao colo, e ao carregá-la, ela deixa-se conduzir: ela não faz ideia nem imagina sequer onde vai, mas deixa-se carregar ou conduzir onde agrada à sua mãe. Da mesma forma, esta alma, amando a vontade do beneplácito de Deus em tudo o que lhe acontece, se deixa levar e caminha, contudo, fazendo com grande cuidado, tudo o que é a vontade de Deus significada.” (S. Francisco de Sales, Colóquios, nº8)