por Diácono Georges Bonneval

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Escolhi este tema neste mês de julho, porque a Igreja celebra a 31 de julho, a memória de Sto. Inácio e também porque este mês se situa no meio de um ano de trabalho, num período propício a um tempo de pausa, de retiro espiritual e, eventualmente, de um retiro de discernimento.

Autor dos “Exercícios Espirituais”, Inácio tornou-se desde o século XVI até hoje, um notável diretor espiritual e um “mestre” para toda a Igreja, no que toca ao carisma do discernimento.

Inácio consagrou os últimos quinze anos da sua vida exclusivamente, a formar os responsáveis por acompanhar  os retirantes no seu retiro de trinta dias. A espiritualidade Inaciana também se tornou uma das principais escolas de formação no acompanhamento espiritual.

O livro dos Exercícios Espirituais, uma obra de meditação e de oração (de duzentas páginas), é considerado como a obra-prima de Inácio de Loyola. Foi escrito a partir da sua própria experiência espiritual, vivida sobretudo em Manresa. Os Exercícios propõem meditações e regras pedagógicas organizadas em quatro semanas. O livro dos Exercícios destina-se a orientar o acompanhador espiritual durante o retiro de trinta dias.

Todo o ensino está orientado para o discernimento porque, para Inácio, toda a decisão humana é ocasião de um encontro particular com o Senhor.

Desde as primeiras iluminações de Manresa, o desejo de Inácio de Loyola é “ajudar as almas”. Para cada retirante, trata-se de uma pedagogia de liberdade interior e de discernimento.

Mesmo se, necessariamente, há que fazer uma atualização e uma adaptação na tradução dos Exercícios Espirituais de Inácio, cinco séculos mais tarde, eles permanecem sempre atuais e uma fonte de inspiração para todo o discernimento espiritual.

Há duas dimensões nos Exercícios que nunca podem dissociar-se: a da escola de oração e de união com Deus e a que diz respeito ao discernimento e à escolha de uma decisão.

Fazer os Exercícios é aprofundar a minha relação com Deus, o que vai, ao mesmo tempo, clarificar as minhas escolhas atuais. Para Inácio, não pode haver a união com Deus sem uma consequência prática do lado da decisão.

Neste artigo, destacamos apenas alguns princípios e regras dados por Sto. Inácio durante a primeira semana dos Exercícios; semana destinada a preparar o retirante para as boas condições do discernimento (eleição):

1. Aquele que quer tomar uma decisão é convidado a voltar ao Princípio e Fundamento (ver texto abaixo), aceitando deixar-se surpreender pelo murmúrio de uma “brisa suave”, sinal da presença de Deus, entre todos os outros movimentos interiores e exteriores (cf. 1 Rs 19,9-18).

Na primeira semana dos Exercícios, o texto do Princípio e Fundamento destina-se a verificar se o retirante está na situação da “santa indiferença”, quer dizer, numa disposição interior ampla e generosa de aceitação e de abandono à vontade de Deus qualquer que ela seja. Este estado interior não tem nada a ver com a preguiça nem com a imprudência, mas é, em si mesma, uma disposição dada pela graça.

Princípio e Fundamento (Exercícios Espirituais, nº 23)

“O homem é criado para louvar, prestar reverência e servir a Deus nosso Senhor e, mediante isso, salvar a sua alma; e as outras coisas sobre a face da terra são criadas para o homem, para que o ajudem a conseguir o fim para que é criado. Donde se segue que o homem tanto há de usar delas quanto o ajudam para o seu fim, e tanto deve deixar-se delas, quanto disso o impedem. Pelo que, é necessário fazer-nos indiferentes a todas as coisas criadas, em tudo o que é concedido à liberdade do nosso livre arbítrio, e não lhe está proibido: de tal maneira que, da nossa parte, não queiramos mais saúde que doença, riqueza que pobreza, honra que desonra, vida longa que vida curta, e consequentemente em tudo o mais; mas somente desejemos e escolhamos o que mais nos conduz ao fim para o qual somos criados.”

2. Em seguida, Sto. Inácio fala de dois estados que encontramos em toda a vida espiritual: a consolação (cf. EE, nº 316) e a desolação (cf. EE, nº 317). Sem dúvida, nos estados de consolação e de desolação, os dois níveis – o espiritual e o psicológico – estão ligados. Mas a vocação de todo ser humano é ver do lado da consolação. Para Inácio, trata-se de ajudar o retirante a sentir e a reconhecer, por si mesmo, as diferentes “moções” que se produzem em sua alma. Aquelas que vêm do Espírito de Deus, aquelas que são produzidas pelo espírito humano e as que vêm do espírito maligno.

 “… Chamo consolação todo o aumento de esperança, fé e caridade e toda a alegria interior que chama e atrai às coisas celestiais e à salvação de sua própria alma, aquientando-a e pacificando-a em seu Criador e Senhor.” (EE, nº 316)

Para Inácio, quando se trata de uma consolação espiritual (e não somente de um sentimento passageiro psicoafetivo), ela brota da união com Deus como um dom da graça. Pode ser experimentada como um crescimento de fé, de esperança e de caridade, como uma nova proximidade com Deus, uma confiança nos outros, uma alegria mais profunda e mais discreta… Esta consolação é dada quando nem pensamos mais nisso, e traduz-se por uma grande sede pela glória de Deus e um maior fervor no serviço de Deus.

Esta consolação – ao contrário de uma consolação centrada sobre si – pode também tomar a forma paradoxal mas dinamizadora de um maior desejo de união a Cristo sofredor e de uma vida mais atenta aos que sofrem. E deve ser sempre considerada como um dom de Deus.

“Chamo desolação a todo o contrário da terceira regra, como obscuridade da alma, perturbação, inclinação a coisas baixas e terrenas, inquietação proveniente de várias agitações e tentações que levam à falta de fé, de esperança e de amor; achando-se a alma toda preguiçosa, tíbia, triste, e como que separada de seu Criador e Senhor. Porque assim como a consolação é contrária à desolação, da mesma maneira os pensamentos que provêm da consolação são contrários aos pensamentos que provêm da desolação.” (EE, nº317)

Contrariamente, a desolação espiritual é o sentimento interior que parece mostrar uma divisão, um conflito, um tempo de nevoeiro e de escuridão, de tristeza, de desânimo, com a perda da paz interior porque, até mesmo a vida espiritual, perde o seu gosto e o seu interesse. São normais (porque ninguém pode viver somente de consolações) e não são sinal que Deus rejeitaria ou não que chamaria a pessoa.

Essa desolação é proveniente, segundo Inácio, dos obstáculos colocados pelo retirante, inconscientemente, à ação de Deus na sua vida e que, a sua boa vontade, é incapaz de vencer.

Inácio vê, através desse estado, o chamado de Deus, e a pessoa deve reagir, não mais como uma criança, mas como um adulto responsável que deve progredir, através de uma superação e de um crescimento. Nesse estado, não é a sua vida exterior que deve mudar mas ele mesmo no seu ser.

Inácio monstra que ele deve reagir às moções contrárias que são do espírito maligno e procurar identificar as causas da desolação.

Ele próprio dá três razões para a desolação: tibieza, preguiça, negligência na oração e nos exercícios espirituais; e servem para ser testado e comprovado na paciência e na esperança; para ensinar que as consolações são puro dom da parte de Deus e que não dependem somente de nós.

Sto. Inácio explica que, num período de desolação, não é o momento de tomar grandes decisões, mas é preciso resistir, lembrar-se da presença de Deus e manter a direção anteriormente tomada.

 “Em tempos de nevoeiro, não mudes a direção que tinhas tomado nos dias claros!” (EE, nº 318)

3. Em seguida, há alguns exercícios que procuram dar ao retirante critérios para se familiarizar com os sinais do bom espírito e poder identificar as marcas do espírito do mal.

Inácio chama ao mau espírito, “o inimigo” (EE, nº314), como “anjo mau” (EE, nº331). Ele o vê sempre como “o inimigo do nosso proveito e da nossa salvação eterna” (cf. EE, nº333).

O mau espírito, segundo Sto. Inácio, “procura não ser reconhecido” (cf. EE, nº 325) porque utiliza toda a espécie de táticas, astúcias e insinuações para confundir o retirante… Durante o retiro, procurará misturar-se com a natureza da pessoa, observando as suas tendências para utilizá-las como acusações contra ela… especialmente a partir dos seus pontos fracos para levá-la ao desânimo.

Inácio utiliza três analogias pedagógicas para ajudar a desmascarar o demônio, nesta primeira semana de Exercícios:

a) O demônio comporta-se como um “ser fraco e covarde” e, quando nós lhe resistimos, põe-se em fuga (cf. EE, nº325): Revela-se implacável com o tímido e covarde diante da afirmação das suas convicções… De fato, como não pode usar de brutalidade com aqueles que pertencem a Jesus Cristo, vai agir com subtileza…

b) O demônio pode também comportar-se como um “namorado frívolo”, querendo que as suas propostas permaneçam secretas e não cheguem aos ouvidos do acompanhador. (cf. EE, nº326)

c) O demônio age como “um chefe militar”, procurando descobrir os pontos fracos da pessoa (fraquezas físicas e psicológicas) para atacar neste campo…(cf. EE, nº327)

Entre a primeira semana e a segunda, Inácio prevê um exercício de transição que ele chama, “o Reino”:  O fim principal é em vista de purificar os desejos do retirante, através da contemplação da pessoa de Cristo. Contemplando o seu Senhor e procurando agarrar-se a Ele, o retirante será iluminado sobre a sua própria vida e será convidado a doar-se a Cristo, por inteiro e sem limites.

a) O exercício do Reino ou “o chamado do rei temporal” (cf. EE, nº 91)

A finalidade deste exercício é fortificar a fé pessoal do retirante no seu Senhor. O acompanhador deve verificar através deste exercício se a oferenda da pessoa é adulta e decidida, antes de chegar ao próprio discernimento.

Esta etapa do Reino permitirá ao retirante, verificar se a sua tendência é de querer servir Deus segundo o condicionamento dos seus próprios desejos e os critérios da sua escolha. Será convidado a oferecer a Deus, livremente, os seus desejos pessoais para que Ele se sirva deles – ou não – para a obra do Seu Reino. O retirante deverá unir-se, ainda mais, à pessoa de Cristo para discernir, em seguida, o verdadeiro chamado que Cristo o convida a considerar. Nesta etapa, o retirante ainda não chegou à questão de uma escolha de vida. Trata-se da oferenda da sua vida em conformidade com Cristo.

“Aquele que mais quiser afeiçoar-se e assinalar em todo o serviço de seu Rei eterno, deverá afirmar o seu Sim incondicional pela oferenda de grande valor que compromete o futuro nos próprios caminhos do Evangelho levado a sério.” (EE, nº 97)

Durante este exercício, o acompanhador deverá permanecer atento e prudente para que o retirante se situe bem na Presença de Deus.

b) O exercício das Duas Bandeiras (cf. EE, nº136-148):

Este exercício dirige-se à inteligência do retirante. Um outro exercício dirigir-se-á mais à sua vontade. Apelando à inteligência do retirante, Inácio procura a purificação profunda da sua afetividade. Assim, poderá ser discernido o que vem do Espírito Santo e o que vem do mau espírito.

Dois capitães cada um com sua bandeira, para escolher atrás de qual o retirante quer colocar-se. Ele não pode fazer muita escolha.

A finalidade é que a pessoa chegue a desvendar (com inteligência) na sua vida afetiva e espiritual, as influências que o animam e que provêm quer seja do Senhor, quer seja do Maligno. Poderá, por vezes, perceber as “forças opostas” que agem nele e, sobretudo, discernir o “fio” que o impede de ser doar inteiramente…

O retirante é convidado a pedir a graça de imitar Cristo pobre, graça que o coloca numa santa indiferença.

As meditações propostas pelas Duas Bandeiras abrem o caminho à eleição (segunda semana) e consistem em escolher “entre o melhor e o menos bom”.

Inácio explicita (no EE, nº333) que, entre os sinais que mostram que o demônio está agindo, está aquele, por vezes, de o retirante que vive uma certa inquietação face ao seu futuro, ele perde a paz que possui, o que mostra que não é Cristo que está na origem dos seus pensamentos.

O bom sinal do Espírito de Cristo reconhece-se quando a pessoa sente em todo o seu ser, uma alegria e um entusiasmo espirituais, com a simples ideia de imitar Cristo.

No final dessa primeira Semana, o retirante, tendo meditado sobre o seu pecado e feito a experiência da sua falsa liberdade, descobre que a verdadeira liberdade só pode ser um dom gratuitamente concedido em Jesus Cristo, pelo próprio Deus.

A Eleição tem lugar no final da segunda Semana, a liberdade percorre, então, duas etapas antes de poder escolher como convém e, depois, em seguida percorrer outras duas para que se manifestem todas as consequências da escolha.

Durante a terceira Semana, tornando-se atento aos sofrimentos de Cristo, o retirante esforça-se por fazer morrer nele o homem velho. Esse será o tema dos exercícios da quarta semana.

Meditando na Ressurreição, a alegria penetra no retirante tornado livre a exemplo de Cristo Ressuscitado. Todos os seus desejos devem estar agora ajustados ao Espírito de Deus.

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