por Diácono Georges Bonneval
Nós cremos e contemplamos no Mistério da Trindade Santa as Pessoas divinas do Pai, do Filho e do Espírito Santo. A nossa contemplação nos leva a admirar “uma outra trindade santa”, que viveu a nossa condição humana e que percorreu a nossa terra: a Sagrada Família de Nazaré. Ela não é “uma outra” trindade, mas o eminente reflexo e espelho da Santíssima Trindade Divina. Vamos tentar ver em que caminho particular as pessoas da Sagrada Família nos ajudam a viver a renovação da vida no Espírito Santo.
Podemos dizer com certeza, que o espírito que reinava na casa de Jesus, Maria e José, era certamente, o de uma plenitude de vida do Espírito Santo! Nós temos uma certa ideia desta experiência, quando vamos a um lugar sagrado de peregrinação, ou à casa de um santo. Nesses lugares de unção do Espírito do Senhor, podemos mesmo, por vezes, perceber de maneira sensível, esse sutil e suave “perfume de Cristo.” (Cf. 2 Cor 2,14; Fl 4,18)
Maria e José viveram nessa “escola” da qual Jesus se refere, ao dizer: “Tomai sobre vós o meu jugo e aprendei de mim, porque sou manso e humilde de coração” (Mt 11, 29). Esta humildade do coração de Jesus, seus pais a tocaram em todas as etapas da vida e do crescimento do seu filho bem-amado.
Essa humildade de coração, Jesus não somente a viveu plenamente, mas a deixou, a Maria e a José, como uma graça a viver, imitando-O.
Trata-se da graça bíblica, designada pela palavra hebraica: “anawa”, que nós podemos traduzir por “a pobreza de coração”. Pobreza, já descrita nos textos do Antigo Testamento (Cf. Nm 12,3; Sl 72,12; Zc 9,9; etc) sobre os “pobres do Senhor”, os “anawim”.
Particularmente marcada nas suas origens pela figura de Moisés. “Moisés era um homem muito humilde, o mais humilde dos homens que havia na terra” (Nm 12,3), a espiritualidade dos anawim é característica do regresso do Exílio da Babilônia, que foi um tempo de provação para o povo de Israel. É esta espiritualidade que anuncia o “pequeno resto de Israel”.
“Deixarei em teu seio um povo pobre e humilde, que procurará refúgio no nome do Senhor, Resto de Israel.” (Sf 3,12-13)
Encontramos particularmente esta espiritualidade no saltério, chamado também: “O livro de oração dos pobres”.
Vemos igualmente esse sentido de anawa, nas expressões das duas Bem-aventuranças: “Bem-aventurados os pobres em espírito” e “Bem-aventurados os mansos…” (Mt 5,3-4)
Trata-se de um estado de purificação que torna o coração humilde, simples, despojado e manso, que torna possível uma profunda intimidade com Deus.
Jesus é o exemplo mais pleno do anaw, o infeliz, o abandonado dos homens e de Deus. Ele reza com o Salmo 22: “Meu Deus, meu Deus, por que me abandonaste?” (Sl 22, 2), que descreve a paixão do pobre. Maria e José fazem parte desses pequenos e pobres da Bíblia.
Anawa é um estado de graça, uma efusão do Espírito Santo que torna o coração “liquefeito” e misericordioso; porque o pobre sabe que nada nele, pode corresponder nem responder, à justiça divina. Deste modo, ele torna-se também manso e misericordioso para com os outros. É essa a graça que testemunha a Virgem Maria no seu Magnificat: “Ele olhou para a humilhação de sua serva.” (Lc 1,48)
Maria e José estiveram na escola do Espírito Santo com Jesus. Maria, desde a Anunciação, foi coberta pela “sombra do Espírito Santo” (Cf. Lc 1,35). O Espírito Santo é essencialmente invisível, já que a sombra é justamente o contrário da luz. Ele anuncia a Maria, a obra que Ele vai fazer nela e, ao mesmo tempo, Ele permanece escondido. Ninguém pode pretender “pôr a mão” sobre o Espírito do Senhor, é Ele, ao contrário que quer conduzir-nos e realizar a obra de Deus, em nós e através de nós.
Isso passa, muitas vezes, por “abalos” na vida da Virgem. Ela foi “perturbada” pelo anúncio do anjo Gabriel (Cf. Lc 1,29). Maria deve ser abalada, para que um novo amor lhe seja dado. Abalada – angustiada – ela o será novamente, quando Jesus aos doze anos, será encontrado no Templo de Jerusalém: “Olha que teu pai e eu, aflitos, te procurávamos” (Lc 2,48). Angústia, que já preparava o coração da mãe para aceitar sem compreender, aos pés da cruz, o mistério da agonia do seu Filho.
O específico deste gênero de graças, é que elas são sempre dadas na fraqueza, no enfraquecimento das nossas certezas, mesmo as mais espirituais. Elas nos exigem, certamente, a fidelidade, mas também a simplicidade, a docilidade, a humildade para acolher o Espírito Santo.
O Espírito Santo é também chamado “o Pai dos pobres”. Nós corremos o risco, muitas vezes, de fazer uma leitura demasiadamente negativa, das nossas vidas, especialmente quando se trata de uma leitura psicológica e pouco espiritual. Ora, Maria e José compreenderam, que é somente a partir da nossa pequenez e das nossas vulnerabilidades humanas que o Espírito Santo pode intervir. O Amor Infinito de Deus é sempre capaz de tirar de um mal, um bem maior. É, então, necessária uma atitude de humildade para aceitá-lo. Não devemos apegar-nos nem às nossas misérias, nem mesmo ao nosso pecado! Como pecadores que somos, devemos aceitar-nos como “pobres pecadores”, isto é, como pobres antes de tudo. É então, que tomamos uma justa distância, sobre o nosso pecado.
Como imaginar que José pôde viver a graça e a responsabilidade de ser o rosto humano do Pai celeste, sem os dons e uma assistência particular do Espírito Santo? E sem esse coração de humilde servo de Deus? Ele recebeu a sua paternidade do amor filial de Jesus no Espírito Santo. Ele entrou nos próprios sentimentos de Cristo, como o declara o apóstolo Paulo: “Tende em vós o mesmo sentimento de Cristo Jesus” (Fl 2,5), Ele que se abaixou por amor de todos os homens.
É esta graça de profundidade que nos faz conhecer Jesus mais intimamente, como Maria e José O conheceram. Todos os santos pediram esta graça de ser purificados, libertados, despojados do seu eu psicológico. Parecia que S. Francisco de Sales tinha um temperamento natural colérico e o Espírito do Senhor fez dele aquele que nós chamávamos em sua vida: “o apóstolo da mansidão”!
Os “pobres” não representam somente uma categoria social, mas uma escolha espiritual. O profeta Sofonias se dirigia também aos anawim: “Procurai o Senhor vós todos, os pobres da terra, que realizais a sua ordem. Procurai a justiça, procurai a pobreza: talvez sejais protegidos no dia da ira do Senhor.” (Sf 2,3)
Essa espiritualidade de anawa não diz respeito só aos pobres em Espírito, mas também, a todos os humilhados deste mundo, despojados do seu ego pelo fogo divino e aqueles também que acolheram as duras provações, como todos aqueles que a vida os tornou pobres, ou portadores de deficiência ou rejeitados. Deus só conhece o coração verdadeiramente humilde e afligido.“Sacrifício a Deus é um espírito contrito, coração contrito e esmagado, ó Deus, tu não desprezas.” (Sl 51,19)
Tornar-se humilde significa ter um coração sem defesas e desprovido de toda a autojustificação. A comoção de Pedro nas lágrimas, contrito e angustiado depois da sua tripla negação: o lava, o transforma, pouco a pouco, numa suavidade que é dom do Espírito. O coração que chora na humilhação alcança ao dom das lágrimas, que é um grande dom do Espírito Santo.
Efraim, Fundador da Comunidade das Beatitudes, um dia citou um autor espiritual ortodoxo que o marcou bastante. Este último aconselhava : “Vai à alma do teu inimigo e lá, chora o teu pecado, e atrairás um Pentecostes sobre ele”.
A Sagrada Família nos provoca a uma confiança nova na Divina Providência
, que é um abandono no Espírito.
“A criação tem a sua bondade e a sua perfeição próprias, mas não saiu totalmente acabada das mãos do Criador. Foi criada ‘em estado de caminho’ (‘in statu viae’) para uma perfeição última ainda a atingir e a que Deus a destinou. Chamamos Divina Providência às disposições pelas quais Deus conduz a sua criação em ordem a essa perfeição.” (CIC, nº 302)
Grande é a tentação de planificar, de tudo prever e, assim, de sair da dependência da Providência, para calcular e assegurar-se que teremos os meios de realizar aquilo que projetamos. José e Maria são os modelos de confiança absoluta na Divina Providência. Eles são mesmo os precursores, porque a experimentaram muitos anos, antes do anúncio de Jesus, pelos sinais que serão concedidos a esta confiança: “Estes sãos os sinais que acompanharam aos que tiverem crido: em Meu Nome…”. (Mc 16,17)
José teve a responsabilidade de “guardião” do Filho de Deus. Ele assumiu essa tarefa numa absoluta confiança em Deus e numa obediência total, às ordens da vontade divina, manifestadas através do anjo, que lhe apareceu ainda três vezes, depois do seu primeiro fiat: “José, ao despertar do sono, agiu conforme o Anjo do Senhor lhe ordenara e recebeu em casa sua mulher.” (Mt 1,24)
Mateus relata unicamente as decisões e os fatos de José através de verbos de ações, como para sublinhar a sua docilidade confiante e obediência prática: “Ele se levantou, tomou o menino e sua mãe, durante a noite, e partiu para o Egito. Ali ficou…” (Mt 2, 14-15). Depois: “Ele se levantou, tomou o menino e sua mãe e entrou na terra de Israel” (Mt 2,21). Por fim: “Tendo recebido um aviso em sonho, partiu para a região da Galileia e foi morar numa cidade chamada Nazaré.” (Mt 2,22-23)
Que início de ministério tão desconcertante para José! Não somente ele teve que chegar a Belém antes do nascimento mas, também teve que percorrer todas essas viagens, com alto risco até ao Egito!
Mateus, no seu Evangelho de infância, sublinha igualmente a coerência entre as decisões e as ações de José e o cumprimento das profecias: “Tudo isso aconteceu para que se cumprisse o que o Senhor havia dito pelo profeta” (Mt 1,22) e “para que se cumprisse o que foi dito pelos profetas.” (Mt 2,23)
Vemos também como José está permanentemente à escuta do Espírito do Senhor e da Sua vontade, quer seja nos primeiros momentos tumultuosos da vida do Salvador, quer posteriormente, na vida calma e regular de Nazaré. Seria interessante ler o Evangelho de S. João fazendo a ligação com a paternidade de José, porque ele é “o evangelho do Pai”; a palavra “pai” aparece, de fato, pelo menos 109 vezes no evangelho joanino!
A fé de José está ligada à sua ação e a sua ação é coerente com a sua fé.
“Nele, não há separação entre fé e ação. A sua fé orienta decididamente as suas ações. Paradoxalmente, é agindo e, consequentemente, assumindo as suas responsabilidades que ele se apaga para deixar a Deus a liberdade de realizar a sua obra, sem lhe criar obstáculo. José é um ‘homem justo’ (Cf. Mt 1, 19), porque a sua vida é ‘ajustada’ à palavra de Deus.” (Papa Bento XVI, dia 18 de março de 2009, em Yaoundé)
“Sede guardiões dos dons de Deus! Guardar Jesus com Maria, guardar a criação inteira, guardar toda a pessoa, especialmente a mais pobre, guardarmo-nos a nós mesmos: eis um serviço que o Bispo de Roma é chamado a cumprir, mas para o qual todos nós somos chamados, para fazer resplandecer a estrela da esperança: guardemos com amor aquilo que Deus nos deu! Peço a intercessão da Virgem Maria, de S. José, de S. Pedro e S. Paulo, de S. Francisco, para que o Espírito Santo acompanhe o meu ministério, e, a todos vós, digo: rezem por mim! Amém.” (Papa Francisco, in homilia de 19 de março de 2013, na Festa de São José na sua instalação pontifical em São Pedro de Roma)
Ou nós seguimos a lógica deste mundo, ou nós escolhemos seguir a lógica do amor paterno de Deus. Na lógica do presépio, Jesus é esse tão pequeno, que se identifica a si mesmo como um pequenino. Feliz aquele que o reconhece nos pequeninos, pois vê Deus! A conversão, é também uma inversão dos valores deste mundo.
“Aquele, portanto, que se tornar pequenino como esta criança, esse é o maior no Reino dos Céus.” (Mt 18,4)
José aprendeu de Jesus a viver de maneira divina. Jesus aprendeu de José a viver da sua humanidade.
Quanto a Maria, é porque ela é mãe do Pobre, do Deus que se fez Pobre, que ela é a mãe de todos os pobres. A mais nobre das criaturas é também a mais humilde, aquela que se apaga diante do seu filho e aquela que o seu filho coroa como Rainha dos humildes. A sua alma transpassada fez vir sobre a terra um Pentecostes de luz e de amor. É uma poderosa efusão do Espírito que aconteceu, de fato, na casa de Zacarias e Isabel em Aïn Karem. A partir dessa primeira efusão, a Boa-Nova é anunciada, o pequeno resto de Israel vai conhecer o seu Messias e o fim da opressão do orgulho e da dominação do mal, está a caminho.
Feliz é ela, a Mãe do único Justo por quem a justificação entrou no mundo, a beleza de Eva foi restaurada em todos os seus filhos, feliz é ela, nossa mãe, que nos obtém, por sua intercessão, os frutos da Bondade Divina.